Surfaces sensibles é a nova proposta de Manuela Marques para a sua quarta exposição individual na Galeria Caroline Pagès em Lisboa que reúne um conjunto de fotografias na linha daquelas que revelou para a sua recente exposição em Reims (Le Cellier, 2017) intitulada A Força de Coriolis. Sobre essa exposição, a comissária Audrey Illouz escreveu o texto seguinte:
A placidez de um lago
A exposição, cujo título remete para um fenómeno físico relacionado com o estudo dos ventos, é atravessada pelo sopro. A imaterialidade do sopro faz com que ele seja difícil de captar e representar. Uma bolha de sabão, uma mão colocada à frente de um rosto, um papagaio rasgado que ficou preso no cume de uma árvore e uma garrafa que rodopia, transformada em catavento, são indícios que chamam a nossa atenção para este elemento vital que emana tanto da atividade humana como da natureza.
Bolhas
A imagem da bolha de sabão,...recorrente na exposição, constitui um primeiro indício dessa materialização do sopro. Devido ao seu cariz efémero que relembra a fugacidade da vida, esta esfera transparente inscreve-se totalmente na tradição pictural da vaidade (de Jacob De Gheyn a Chardin, passando por Manet) para evocar agora um contraponto contemporâneo, uma variação sobre o tema Homo bulla est (“O Homem é uma bolha”.) No vídeo O Soprador, o enquadramento apertado do soprador de bolhas remete, como na Bolha de sabão de Chardin, para um exercício de concentração. Porém, o homem que se encontra à nossa frente não passa de um vendedor ambulante cujo trabalho é dos mais precários, arrastado pela agitação da megalópole. O esforço de concentração também assume uma dimensão social subjacente. Pousada na palma da mão, a bolha torna visível o espetro de luz e parece estar prestes a rebentar (Mão 3). Quando substitui um broto nos ramos de uma árvore, com uma tensão entre a vida e a morte, ela transforma-se em brinquedo ótico, espelho do mundo contrariado e desdobrado (Bolha 1). Invertendo a paisagem que produz, a bolha também relembra a camera obscura e parece invocar o próprio ato fotográfico.
Surfaces sensibles
Ora, os jogos óticos, reflexos, aberrações e outras ilusões são omnipresentes nesta exposição onde a presença do espelho é recorrente. O espelho é nomeadamente fotografado no palácio de Versalhes onde a artista esteve em residência entre 2014 e 2016. Nos espaços labirínticos do palácio, Manuela Marques fotografa o reflexo dos espelhos e o emaranhado de portas, criando uma sensação de perda de referências vertiginosa (Espelho 3). Autorizada a trabalhar em espaços inacessíveis ao público, a artista interessou-se por grandes superfícies vidradas onde o sincelo bloqueia a visão (Vidro 8). Porém, podemos distinguir as inscrições deixadas por visitantes anónimos, desejosos de assinalar a sua passagem pelo local. Essa superfície que relembra um daguerreótipo alterado também evoca as origens da fotografia. Aqui, existe uma tensão entre a representação e a abstração. A representação apaga-se para oferecer uma experiência de perceção limite, como em Lago 1 e 2, onde a visão também parece obstruída. A superfície do lago é monocromática, leitosa e impenetrável em vez de refletora. Devemos olhar fixamente para a imagem para que essa superfície mostre, por cima e por baixo dela, as plantas que escapam ao primeiro olhar. É então que o Lago de águas plácidas aparece como uma metáfora da superfície sensível sobre a qual a imagem é revelada.
Espelhos negros
A fotógrafa introduziu recentemente um elemento de encenação na paisagem, uma placa negra em PVC, superfície refletora capaz de perturbar a visão. A fotografia intitulada A Travessia funciona por sua vez como um indicador já que revela o dispositivo, inserindo-o em simultâneo na composição da imagem. O homem que atravessa o campo visual e cujo rosto está dissimulado pelo ecrã que transporta funde-se na paisagem. Justapõem-se dois fragmentos de paisagem. Nessa tensão entre presença e desaparecimento, o corpo segue uma estratégia de camuflagem que reaparece noutros retratos. A Braçada deixa adivinhar
um corpo cujo rosto inacabado está coberto de flores. Um bloco de gelo que encarcera vegetais substitui o rosto de forma transitória (Bloco 1).
Em A Travessia, a superfície negra esgueira-se pela paisagem e relembra o espelho do mesmo tom, esse instrumento ótico utilizado pelos pintores de paisagens e popularizado por Claude Lorrain, cuja superfície ligeiramente convexa e tingida permitia isolar o assunto a tratar e determinar o enquadramento. Na fotografia Caminho 1, o espaço que se apresenta ao espectador é apenas o reflexo (a curva da estrada é impossível). A experiência lembra aquela que sentimos perante os reflexos dos espelhos de Dan Graham na paisagem. Travessando uma moradia em Double Exposure, a paisagem natural, a fotografia e a arquitetura feita de espelhos interferem. Embora a relação interpessoal e a dimensão in situ não estejam em jogo no trabalho de Manuela Marques, este fragmento fotográfico restitui o caminho ao primeiro plano, inserindo um orifício na paisagem de fundo. O enquadramento recria uma profundidade, oferecendo ao espectador um espaço de projeção. Todo o nosso corpo se insere na imagem, como é o caso em Rocha, uma impressão com fundo azul à escala de uma calha de pendurar quadros, onde o reflexo e o real estão ao mesmo nível porque se encaixam e justapõem. É esse dispositivo que está em ação no vídeo A Força de Coriolis. As pedras que como móbiles, giram em movimentos contrários, provêm de recomposições onde o objeto e o seu reflexo também estão ao mesmo nível.
O desdobramento que atravessa as obras de Manuela Marques e faz eco da arquitetura do Cellier e dos seus dois vãos, reaparece no percurso da exposição, perturbando a perceção. Os elementos repetitivos (bolhas, pedras, espelhos e vidros) assumem uma tensão reflexiva. A exposição oscila entre opacidade e revelação, representação e abstração, presença e desaparecimento e convida a reconsiderar o próprio ato fotográfico.
Audrey Illouz
(Traduzido do francês por Irène Leclerc)
Entrada actualizada el el 27 mar de 2018
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