Para lá do visível…
Visitar o atelier da artista Nettie Burnett, é uma aventura apaixonante. Deparamo-nos à primeira vista, com um vasto mundo, enigmático, aparentemente vazio, cinzento e silencioso, não passando tudo isso de uma falsa ilusão. Considerando que olhar não será o mesmo que ver, um mundo fascinante se descobre através das obras que por lá vamos descobrindo, mundo esse que, tanto pode estar inscrito nas montanhas escarpadas, desde um longínquo tempo, como surgir duma forma inusitada na neblina pintada de crepúsculo e pousada no chão do devir, ou ainda, na exaltação de valores telúricos da terra e das vinhas do Douro distante, como monumento eterno ao silêncio e à paz dos dias. Foi lá que, a artista desenhou em beleza e arte, não só o tempo das serranias translúcidas de sombras, mas também um envolvimento paisagístico que está para lá da sua origem, visível na aparência de superfície imutável,...e que nos remete para tempos imemoriais. Um olhar ainda inquieto e descobre-se que todo esse espaço está povoado de formas e memórias que esvoaçam como aves brancas e difusas, ou improváveis pássaros de fogo que, levados pelo sibilar do vento que caminha sobre o rio, se afogam depois, em voo quase apagado, ou mágica dança poética, nos poentes de todos os dias. Os seus desenhos ora repousam como imponentes paisagens efémeras, às quais ficamos indubitavelmente ligados, ora voam pelas paredes nuas, num tempo cor de terra que, um dia pousou por ali, para um diálogo de silêncio maior do que as palavras e onde a essência das obras, está para além do visível.
Falar da arte de marcada actualidade de Nettie Burnett, dos seus mundos reinventados e que se desenvolvem em espaços enigmáticos, a partir da simbiose entre o real e o imaginário, não é tarefa fácil. Apenas as emoções sentidas, face aos desenhos já referidos que voam ou fogem de nós, ou ainda à subtil ancestralidade dessas memórias, tudo se apresenta e respira como resultado final duma solidão introspectiva que nos permite uma fruição mágica, tão surpreendente, quanto verdadeiramente marcante e intensa. Citaria a propósito do que está para lá da aparência visível, Clarice Lispector que, tão sabiamente nos aconselha: «Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo o entendimento».
São vivências da cor da terra e do tempo, inquietantes e fascinantes, que culminam com o desvendar de novos mundos, ou realidades paradigmáticas, convocando-nos para um diálogo feito de fruição e silêncio, como resultado dum recolhimento reflexivo e intimista que a artista tão bem sabe transmitir, através da linguagem do pensamento artístico e poético, obedecendo quase compulsivamente a inusitadas forças que, residem no seu «Eu» mais profundo, onde se arquivam as memórias.
Ocorre-me lembrar ainda, as palavras de George Steiner, no seu livro “A Poesia do Pensamento” e que passo a citar: “a partir do dia em que um viajante de Argos, ao ver os pastores nas colinas rochosas, os percebeu como «pastores dos ventos», ou do dia em que um marinheiro do Pireu teve a impressão de que a sua quilha “lavrava o mar”, estava aberto o caminho que levaria a Platão e a Immanuel Kant. Caminho que começou na poesia e nunca se afastou demasiado dela”.
Isolina Carvalho, maio - 2015
NETTIE BURNETT, mestrado em belas artes, Norwich School of Art and Design. Bachalerato em Escultura, Wimbledon school of Art, London. Docente de Desenho na Escola Superior Artística do Porto, 2000-4. Diretora de Artes Foundation, University College Suffolk. Docente de Drawing Studies, Design Communication – University College, Suffolk. Convidada no Curso Mestrado Goldsmiths College, London. Prémio Baviera (revelação) 2002. Menção honrosa na Bienal da Marinha Grande 2001. Expõe individualmente e colectivamente em Portugal, França, Inglaterra e Espanha.
Entrada actualizada el el 21 may de 2021
¿Te gustaría añadir o modificar algo de este perfil?
